quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Pluralidade e Verdade -- Reflexões sobre a Universidade Moderna

Prof. Dr. Rev. Augustus Nicodemus Lopes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie

A pluralidade é um dos conceitos ícones da nossa geração e uma das marcas da moderna Universidade.[1] A idéia de diversidade está presente na sua história desde o início, mas ganhou novas conotações depois do Iluminismo.

As universidades surgiram graças a diferentes fatores, como atender à crescente demanda de pessoas em busca de educação, o desejo idealista de obter conhecimento, a resistência ao monopólio do saber pelos mosteiros, a vitalidade das escolas mantidas pelas catedrais e o desejo de reformar o ensino.[2] Todavia, elas tinham um objetivo comum, uma mesma missão, que era a busca do conhecimento unificado que permitisse a compreensão da realidade.

Universitas, na Idade Média, era um termo jurídico que, empregado para as escolas, significava um grupo inteiro de pessoas engajadas em ocupações científicas, isto é, professores e alunos. Só mais tarde o termo viria a significar uma instituição de ensino onde essas atividades ocorriam. Essa designação já aponta para a tarefa que pessoas diferentes tinham em comum: a busca da verdade em meio à pluralidade de compreensões. Esse alvo requeria uma síntese das diferentes visões e compreensões de mundo, um campo integrado que desse sentido aos mais diversos saberes. O princípio subjacente à criação das universidades, portanto, era procurar as verdades universais que pudessem unir as diferentes áreas do conhecimento. Daí o nome “universidade”.

Quando as universidades surgiram, a cosmovisão cristã que dominava a Europa fornecia os pressupostos para essa busca da unidade do conhecimento. Hoje, essa visão de mundo é excluída a priori em muitas universidades pelos pressupostos naturalistas, humanísticos e racionalistas que passaram a dominar o ambiente acadêmico depois do Iluminismo. Tais pressupostos não têm conseguido até o presente suprir uma base comum para as diferentes áreas do saber. A fragmentação do conhecimento tem sido um resultado constante na Academia, como se as diferentes disciplinas tratassem com mundos distintos, diferentes e contraditórios. Lamentavelmente, hoje, muitas universidades viraram multiversidades ou diversidades, abandonando a busca de um todo coerente, de uma cosmovisão que dê sentido e relacionamento harmônico a todos os campos de conhecimento.

Conforme Allan Harman escreve:


As universidades em geral não mais possuem um fator integrador. A palavra universidade” tem a idéia de unidade de conhecimento ou de abordagem. Derivada Do latim “universum” refere-se à totalidade ou integração. Claramente o conceito era de que, dentro de uma universidade, havia aderência a uma base comum de conhecimento que interligava o ensino em todas as escolas.[3]

Edgar Morin, intelectual francês contemporâneo, percebeu corretamente essa fragmentação do conhecimento e da educação nas diversas obras que tem publicado. Para ele,


... o sistema educativo fragmenta a realidade, simplifica o complexo, separa o que é inseparável, ignora a multiplicidade e a diversidade... As disciplinas como estão estruturadas só servem para isolar os objetos do seu meio e isolar partes de um todo. Eliminam a desordem e as contradições existentes, para dar uma falsa sensação de arrumação. A educação deveria romper com isso mostrando as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas que hoje existem. Caso contrário, será sempre ineficiente e insuficiente para os cidadãos do futuro.[4]

É evidente que existe uma grande pluralidade ou diversidade no mundo. A criação de Deus é plural, a humanidade feita à imagem dele é plural, as culturas são plurais, as idéias são plurais. Há uma enorme e fascinante diversidade na realidade que nos cerca. Para nós, essa impressionante variedade da existência deveria ser vista como uma expressão da riqueza, do poder e da criatividade de Deus, em nada comprometendo nossa busca na academia por verdades absolutas e universais.

As dificuldades surgem quando se confunde pluralidade com relativismo radical e absoluto. Esse último nega os conceitos de unidade, igualdade, harmonia e coerência que existem no mundo, entre idéias, pessoas e culturas. O relativismo total pretende desconstruir o princípio implícito de verdade absoluta, de valores, conceitos e idéias que sejam válidos em qualquer lugar e a qualquer tempo. Nesse sentido, a pluralidade se confunde com o relativismo que domina a mentalidade contemporânea, sendo entendida como a convivência de idéias e concepções contraditórias que devem ser igualmente aceitas, sem o crivo do exame da veracidade e sem que uma prevaleça sobre a outra, visto serem consideradas todas verdadeiras.

A pluralidade, entendida como diversidade, é muito bem-vinda. A enorme variedade que caracteriza nosso mundo não anula de forma alguma a existência de verdades gerais e universais. Quando a pluralidade é entendida como relativismo absoluto, surgem diversos problemas de natureza prática, como, por exemplo, a dificuldade de se viver o dia a dia de forma coerente com a crença de que tudo é relativo. Mesmo os relativistas mais radicais são obrigados a capitular diante da inexorável realidade: a vida só pode ser organizada e levada à frente com base em princípios, valores e leis universais que sejam observados e reconhecidos por todos.

Concordamos com Edgar Morin quanto à sua percepção da complexidade da vida e da existência.[5] Não negamos a grande contribuição que ele e outros autores trouxeram à compreensão da complexidade. Todavia, entendemos que o reconhecimento de que todas as áreas de atividades e conhecimento são complexamente interligadas reflete um propósito unificado e uma origem única, apontando para o Criador. É evidente que essa interligação das partes com o todo, e vice-versa reforça a possibilidade de se buscar princípios e valores universais que permeiam e regulam o universo de conexões e aderências.

Apesar de muitos preferirem ser “uma metamorfose ambulante”, como o Raul Seixas, dificilmente o ser humano consegue conviver em paz com o relativismo absoluto. Existe uma busca interior em cada indivíduo por coerência, síntese e unidade de pensamento, sem o que não se pode encontrar sentido na realidade, um lugar no mundo e nem mesmo saber por onde caminhar. Acreditamos que este ímpeto é decorrente da imagem de Deus no homem, um Deus de ordem, de propósitos, coerente e completo.

Para muitos, o ideal do pluralismo de idéias no ensino significa simplesmente que a Universidade deveria ser o local neutro onde todas as idéias e seus contraditórios tivessem igualdade de expressão, cabendo aos alunos uma escolha, ou não, daquelas que lhe parecerem mais corretas. Todavia, conforme bem escreveu Robert P. Wolff, a neutralidade da Universidade diante dos valores é um mito.[6] É inevitável o posicionamento ideológico diante das questões da vida e do conhecimento. Esse ponto é inclusive reconhecido, ainda que timidamente, pela Lei de Diretrizes e Bases, quando define as universidades confessionais como aquelas que “atendem a orientação confessional e ideologia específicas.”[7]

Algumas universidades de orientação confessional cristã têm procurado desenvolver um modelo acadêmico em que a busca da verdade seja feita a partir da visão de mundo cristã em constante diálogo com a pluralidade de idéias e com a diversidade de visões e entendimentos. Não é tarefa fácil diante do mundo pluralista em que vivemos, a ponto de que alguns têm defendido que as próprias universidades confessionais desistam desse ideal.

Diante do quadro de fragmentação do saber e do relativismo que domina, em várias instâncias, a mentalidade universitária, afirmamos a existência, a realidade e a importância da verdade, de conceitos que são universalmente válidos em todas as áreas do conhecimento e da vida. Aqui, afirmamos as seguintes “verdades sobre a verdade":[8]

A verdade é descoberta e não inventada. Ela existe independentemente do conhecimento que uma pessoa tenha dela.
A verdade é transcultural. Se algo é verdadeiro, será verdadeiro para todas as pessoas, em todos os lugares.
A verdade é imutável, embora a nossa crença sobre ela possa mudar. Ela permanece a mesma, o que é relativo é nossa percepção dela.
As crenças das pessoas não podem mudar a verdade, por mais honestas e sérias que sejam.
A verdade não é afetada pela atitude de quem a professa ou de quem a nega.

Reconhecemos a existência da diversidade, variedade, multiplicidade de idéias, conceitos, costumes, e que elas resultam dos diferentes ambientes vivenciais, experiências e culturas dos indivíduos. Todavia, questionamos a idéia de que pluralidade implica na total relativização da verdade, na dissolução do conceito de que existem idéias e valores absolutos, princípios e verdades espirituais, éticas, morais, epistemológicas universais.

Creio que o Cristianismo bíblico fornece o fundamento para a compreensão da realidade como um todo coerente, sempre levando em conta a fabulosa variedade da existência humana. A pluralidade, entendida como saudável diversidade, dentro de referenciais e sem a negação da verdade, enriquece o conhecimento humano e leva à melhor percepção de nós mesmos, de nosso mundo e de nosso Criador.

NOTAS

[1] O pluralismo de idéias é um dos princípios de ministração do ensino na Universidade, de acordo com o Art. 206, inciso III da Constituição Federal.
[2] Stephen C. Ferruolo, The Origins of the University: the Schools of Paris and Their Critics, 1100-1215 (Stanford University Press, 1985), pp.7-8.
[3] Allan Harman, “Vision and Reality: The Challenges Facing Christian Higher Education Today,” palestra inaugural na Universidade Presbiteriana da Coréia em 1998, pp. 24-25.
[4] Entrevista dada em dezembro de 2003, acessada em novembro de 2007 em http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/168_dez03/html/falamestre.
[5] A complexidade em Morin significa que nada existe isoladamente, mas que tudo está conectado, e que as coisas existem em relação a outras. Envolve o paradoxo do uno e da multiplicidade ao mesmo tempo. Cf. Introducción Al Pensamiento Complejo (Barcelona: Gedisa, 1994), p. 23.
[6] Robert Paulo Wolff, O Ideal de Universidade (São Paulo: UNESP, 1993), pp. 101-108.
[7] Lei de Diretrizes e Bases, Art. 20, inciso III.
[8] Norman Geisler e Frank Turek, Não tenho fé suficiente para ser ateu (Vida Acadêmica: São Paulo, 2004) p.38.



Marcadores: ciência, confissão, cosmovisão, pós-modernidade, relativismo, verdade


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postado pelo Prof. Luis Cavalcante

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